Le Petit Fred

terça-feira, 12 de julho de 2005

Ensaio sobre a cegueira



- "Por favor nao lhe dê mais...", suplico eu com ar de pedinte.
- "É só este pedacinho", responde a louca da octagenária olhando-me com desdém.
A história é cíclica, disso estou convicto e seguro, mas o período de repetição deste evento atingia o limite do razoável ao qual poderíamos fazer uma igualdade a um acontecimento contínuo.
- "A sério, ela está de castigo!", tento eu assim arrancar a raíz da trepadeira com a mudança rápida de argumento. Era um argumento brilhante, pensei. Quando alguém carrega sobre si a responsabilidade do ensinamento merece não ser contrariado por altura da aplicação das acções que se impõem.
- "Mas ela não fez mal nenhum, estava só lá dentro comigo...", defende a viúva. Bem á minha frente. E com o ar de quem tinha ganho a batalha e poderia agora espetar a espada sem dó nem piedade, prepara-se para construir um muro entre o autoritário e a vítima.
Foi instantes antes desse momento, quando o "pedacinho" de bolo de arroz já estava sobre a mão inclinada a poucos centímetros da boca da Teresa, que uma força veio de dentro de mim e tomou controle do meu comportamento.
A minha mão ergueu-se, e enquanto o diabo coçava o rabo (acabara de acordar e sentiu que se tinha acumulado no seu vale rectal tecido oriundo dos seus boxers, vermelhos com bonecos de diabinhas, durante toda a noite), dirigiu-se até ao nariz pontiagudo e amordaçou a gulosa impedindo-a de ingerir o ónus da questão. Antes que a demoníaca alcoviteira pudesse reagir e tecer algum comentário à minha súbita agressividade, discurso:
- "Ela vê mal! Está com um problema gravíssimo nas vistas. Ainda ontem fomos ao médico e este ficou admiradíssimo em como o estado dela tinha piorado. Já mal distingue as formas! " - enquanto faço uma pausa no declamar, passo a mão que não segura o focinho pela frente da cara da criança - "E os doces fazem-lhe tão mal! Agrava-lhe as cataratas. Tenho até medo que se torne diabética. Nem quero pensar nisso."
Nesse momento já as tropas adversárias se retiravam e tentavam uma negociação.
- "E uma torradinha com manteiga?"
- "Nem pensar. Manteiga. Gordura... Nem sei o que é pior! Pão seco ou torrado... sem manteiga. Mas para isso, mais vale fazer-lhe simplesmente umas festinhas!"
Ao ver a sombra negra afastar-se admito que senti o prazer da vitória, mas ainda me incomoda ouvir os risinhos do advogado.

4 comentários:

andre disse...

e assim aconteceu em campo de ourique...

ja nao sei mais como abafar o som das minhas gargalhadas :)
ceguinha .. o alibi perfeito :D

obrigado por (+) este momento de genialidade ...

Guida Marques Pinto disse...

Foram golpes de oratória atrás de golpes de oratória- e algum apelo físico- para salvar a Teresa.
Espero que quando chegue à adolescência ela agradeça e compreenda o sacríficio necessário para caber nos tops da Zara.

És o verdadeiro herói da Ferreira Borges:P

Jorge disse...

Ainda se o dito senhor fizesse pontuação e, muito emboara, em certa medida me não custe aceitar uma certa ciatividade, nem que fosse pelo respeito mínimo que a gramática lhe merece talvez tivesse mais interesse na sua obra.

lpf disse...

Jorge, obrigado pela crítica. Só assim melhoramos.

Para defender o mestre Saramago aconselho sempre a consulta deste blog sobre a pontuação, em particular no uso da vírgula.
A bibliografia recomendada neste, também.